ESPERANÇA SEVENE DESTACADA PELO SEU LEGADO NA FARMACOVIGILÂNCIA EM MOÇAMBIQUE
- Wanderleia Iris Noa
- 1 de jul.
- 4 min de leitura

Em um artigo publicado pela revista The Lancet Infectious Diseases, Esperança Sevene é reconhecida pelo seu legado na farmacovigilância e por todo seu contributo na investigação em saúde, principalmente em mulheres grávidas.
A carreira de Esperança Sevene foi marcada por uma série de acontecimentos fortuitos que a conduziram até as suas actuais como Professora Associada de Farmacologia Clínica na Universidade Eduardo Mondlane e Investigadora Sénior no Centro de Investigação em Saúde da Manhiça (CISM), em Maputo, Moçambique.
“Eu queria ser cardiologista”, conta Sevene à The Lancet Infectious Diseases. “Mas hoje sou muito grata pelas reviravoltas que me levaram à carreira em farmacologia clínica.” Cresceu com cinco irmãos em Maputo, Sevene cresceu num ambiente familiar que valorizava fortemente a importância de uma boa educação, especialmente para as raparigas. “O meu pai dizia que assim não dependeríamos dos nossos maridos!”, explica.
Foi na escola secundária que aconteceu a primeira grande reviravolta positiva quando conseguiu um estágio de verão no Hospital Central de Maputo, onde trabalhou com fisioterapeutas. “Gostei de ajudar as pessoas a recuperar os movimentos e a melhorar”, conta. “A partir daquele momento, soube que queria ser era médica.”
Durante o curso de Medicina na Universidade Eduardo Mondlane, enfrentou desafios impostos pela guerra civil em Moçambique, que dificultou bastante a formação médica. “Tratávamos muitas lesões de guerra, o que aumentava o stress”, relata. Ainda assim, após a licenciatura, dedicou-se por dois anos à cardiologia, a tempo inteiro. No entanto, uma nova reviravolta surgiria: ao receber a sua colocação profissional, foi surpreendida com a designação para dar aulas na faculdade.
“Eu não queria dar aulas”, admite Sevene, mas o meu pai dizia que o país estava de joelhos e que todos tínhamos de contribuir”. Na universidade, contou com o apoio fundamental do seu mentor, Sam Patel, que ajudou os novos docentes a encontrar formações complementares. Foi assim que Sevene obteve uma bolsa de estudos para a Universidade Autónoma de Barcelona, em Espanha, onde concluiu o mestrado em Farmacoepidemiologia em 1999.
“Decidi abraçar a farmacologia, pois podia ligá-la à cardiologia, explica. “Tive a sorte de contar com grandes mentores como Joan Laporte e Dolors Capellà, que desempenharam um papel essencial na minha compreensão da farmacologia clínica”. A partir dessa base, interesse voultou-se para a farmacovigilância – área que aprofundou com Karen Burns, na Universidade da Cidade do Cabo, e no Centro de Monitorização de Uppsala, na Suécia.
Ao regressar a Maputo, iniciou imediatamente a criação de um sistema de farmacovigilância na Universidade Eduardo Mondlane, monitorando a segurança da então nova combinação de antimaláricos artemeter-lumefantrina, especialmente em contextos com recursos limitados. Os resultados mostraram que os medicamentos eram seguros. “No entanto observámos que uso desse medicamento não era recomendado para grávidas”, explica. “Queríamos saber se havia, de facto, uma base científica para essa restrição”.
Trabalhando com colegas do Malaria in Pregnancy Consortium, Sevene investigou os efeitos do medicamento em mulheres expostas acidentalmente à combinação terapêutica no início da gravidez. “Descobrimos que essas mulheres não apresentavam maior risco de efeitos adversos comparadas com aquelas que usavam outros antimaláricos”, afirma. “Esses resultados abriram-me a mente, e comecei a defender que as mulheres grávidas não devem ser excluídas quando se introduzem medicamentos novos e eficazes.”
Mais tarde, em 2009, completou o doutoramento na Universidade de Barcelona, com foco no uso seguro de medicamentos durante a gravidez, orientada por Clara Menendez e Xavier Carné.
Entre os seus outros estudos mais relevantes sobre a malária na gravidez, destaca-se o PYRAPREG, que compara a eficácia e segurança da dihidroartemisinina–piperaquina, artemeter–lumefantrina e pironaridina–artesunato.
Para além da malária, Sevene tem contribuído para a saúde pública em outras frentes. Participou em acções de sensibilização para a vacinação contra o vírus do papiloma humano (HPV), no âmbito de um estudo de demonstração realizado com adolescentes em Moçambique. Apesar do cancro do colo do útero ser o tipo de cancro mais comum em mulheres no país, a taxa de cobertura vacinal permanece baixa, em torna de 35%.
Actualmente, integra também o estudo ELEVATE, que pretende lançar um dispositivo portátil, movido a bateria, para auto-colheita de amostras com o objetivo de detetar ADN do HPV e biomarcadores proteómicos indicativos de risco de cancro cervical. “Isso permitiria fazer o teste no ponto de atendimento, sem necessidade de um laboratório de citologia”, explica. “Esperamos testar o dispositivo em mulheres do Camboja, Etiópia, Moçambique e Uganda.”
A vasta experiência de Esperança Sevene em farmacovigilância inclui o seu papel como monitora local de segurança nos ensaios clínicos de fase 2 e 3 da vacina contra a malária RTS,S, sob orientação de Pedro Alonso. Nessa função, participou na revisão cuidadosa dos eventos adversos relatados, incluindo suspeitas de malária cerebral, casos de meningite e aparentes desequilíbrios na ocurrência de eventos entre meninos e meninas. Quando foi recomendada a implementação piloto de fase 4, foi convidada a integrar o Comité de Monitorização de Dados e Segurança.
“O ensaio de fase 4 não mostrou evidência desses efeitos adversos, explica. “Sinto orgulho em ver que, depois de um longo processo de desenvolvimento, as vacinas contra a malária estão finalmente a ser implementadas no meu país, protegendo as nossas crianças desta doença”.
Entre osutros marcos importantes da sua carreira, destaca-se a contribuição fundamental para a criação do Comité Nacional de Bioética para a Saúde (CNBS) de Moçambique, em 2002 — um passo essencial para a implementação de estudos sobre a segurança de medicamentos e vacinas alinhados com os padrões éticos internacionais. Desde 2022, é presidente do Comité.
“A farmacovigilância trata do uso seguro de medicamentos e vacinas, enquanto a bioética preocupa-se com o bem-estar dos participantes. Encontrei aqui uma ligação entre as duas áreas e dediquei grande parte da minha carreira a esse cruzamento”, afirma.
Fora do trabalho, Sevene é mãe de dois rapazes, de 18 e 25 anos, e admite, com humor, que foi “convencida” por eles e pelo marido a gostar de futebol. “Era melhor não resistir”, ri. Mantém ainda um grupo grande de amigos – alguns desde o tempo da escola secundária – e, quando precisa de um tempo só para si, dedica-se à leitura de um bom livro.
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