“A ESTAÇÃO DOS MOSQUITOS: A HISTÓRIA DA VACINA RTS,S EM MANHIÇA”
- Pedro Aide

- 9 de set.
- 4 min de leitura

Tudo começa com a chuva. Em Manhiça, quando as primeiras gotas caem sobre os telhados de zinco, todos sabem o que vem a seguir: os mosquitos e a ameaça da temível malária. Mas, em 2002, um pequeno grupo de investigadores do Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM) e do actual Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal) decidiu enfrentar essa realidade com um sonho ousado: participar no desenvolvimento da primeira vacina contra a malária do mundo.
O nome era curioso – RTS,S – quase como um código secreto. Por trás dele, porém, havia uma promessa poderosa: “treinar” o sistema imunitário das crianças a reconhecer e travar o parasita antes de este chegar ao fígado. Se a vacina funcionasse ali, em aldeias reais e com mosquitos reais, poderia funcionar em qualquer lugar.
Com recursos limitados, mas com uma equipa motivada e comunidades dispostas a colaborar, começou um dos capítulos mais marcantes da investigação biomédica em Moçambique. Enfermeiras, técnicos, médicos e jovens investigadores juntaram-se para construir um ensaio clínico de alto rigor científico, enfrentando desafios logísticos enormes — estradas quase intransitáveis, cortes constantes de energia, chuvas intensas. Ainda assim, a determinação era maior do que todos os obstáculos.
Os primeiros resultados chegaram com o peso de um Lancet em cima da secretária. Em crianças entre 1 e 4 anos, a RTS,S/AS02A mostrou ser capaz de reduzir novas infeções e diminuir episódios de malária clínica, no cenário real de Manhiça — com lama, mosquitos e todas adversidades do quotidiano. A vacina era segura, era imunogénica. E, pela primeira vez, um ensaio realizado num contexto rural africano dizia, em linguagem científica, que uma vacina contra a malária podia funcionar fora de um laboratório.
Depois, veio o trabalho paciente de construir pontes — literalmente, entre diferentes formulações de adjuvantes e, simbolicamente, entre a esperança e as políticas de saúde. O CISM conduziu um estudo comparativo, o “bridging”, entre a formulação inicial AS02A e uma versão mais adequada a bebés, a AS02D. O objectivo era prático: manter a eficácia, adaptar-se a crianças mais pequenas e preparar o terreno para ensaios de maior escala. Os resultados confirmam segurança e forte imunogenicidade também nesta faixa etária.
Bebés – mais pequenos e vulneráveis – estiveram no centro da visão.

Desde o início, os bebés – os mais pequenos e vulneráveis – estiveram no centro da visão. Ensaios realizados em vários países africanos, com contributos decisivos de Moçambique, mostraram que administrar a RTS,S na primeira infância era seguro. — Cada dado novo, cada artigo publicado, era mais um degrau firme na escada que conduzia a um futuro em que esta vacina poderia integrar programas nacionais de imunização.
Depois, o horizonte alargou-se. Entre 2009 e 2014, o ensaio de Fase III estendeu-se a 11 locais em sete países africanos — Moçambique entre eles — como uma verdadeira caravana de malas térmicas e formulários clínicos. Mais de 15.000 bebés e crianças foram incluídos. No CISM, o ritmo já era familiar: administrar doses, acompanhar vigilância, realizar microscopia, cumprir auditorias de dados; e depois, nas reuniões, ver os números ganharem, pouco a pouco, significado. Os resultados eram claros: entre crianças de 5 a 17 meses, a vacina reduziu em cerca de um terço a metade os episódios de malária clínica, preveniu formas graves da doença e mostrou benefício reforçado com uma dose de reforço. Não era uma bala de prata — mas era um escudo real, sobretudo quando usado em conjunto com redes mosquiteiras, diagnóstico e tratamento adequados.
Quando, em 2014, os últimos formulários foram registados, a história de Manhiça já estava entrelaçada com a de toda a África. Os dados moçambicanos — colhidos entre caminhos poeirentos, admissões noturnas, falhas de energia e roncos constantes de geradores — passaram a integrar um mosaico continental de evidência. E esse mozaico dizia, com clareza: nos sistemas de saúde reais, com crianças reais, o RTS,S consegue evitar inúmeras febres, inúmeras consultas e muitas campas demasiado pequenas para suportar os nomes gravados.
O mundo seguiu em frente — entre decisões de reguladores, deliberações da OMS, projectos-piloto e, mais tarde, a chegada de uma segunda vacina. Mas essa já é outra história. O que pertence ao CISM, entre 2002 e 2014, é isto: uma comunidade que abriu as suas portas; uma equipa de cientistas moçambicanos e parceiros que ergueu ensaios clínicos de classe mundial num distrito rural; e resultados que ajudaram a inclinar a política global para o lado da esperança.
Hoje, graças a esta investigação pioneira, milhares de crianças estão mais protegidas contra a malária. E tudo começou aqui, em Manhiça, com uma equipa que ousou sonhar, trabalhar em conjunto e acreditar que a ciência feita em Moçambique podia mudar o mundo.
Lições para quem sonha ser investigador
Grandes descobertas começam com pequenas perguntas. O simples “e se…?” pode ser o início de uma revolução científica.
O trabalho de equipa faz a diferença. Cientistas, enfermeiros, técnicos de laboratório, motoristas, agentes comunitários — todos são parte da descoberta.
Resiliência é chave. A investigação enfrenta falhas de energia, estradas intransitáveis, dados perdidos… Mas cada desafio superado transforma-se em conquista.
Ciência local, impacto global. O que começou em Manhiça hoje salva vidas em vários países africanos.
E se fosses tu o próximo?
Talvez sejas tu a descobrir novas vacinas, novas terapias ou estratégias inovadoras para controlar doenças. A ciência precisa de mentes jovens curiosas, criativas e determinadas. No CISM, e em muitos outros centros, há espaço para aprender, investigar e sonhar mais alto.
Porque, tal como aconteceu com a RTS,S, cada grande mudança começa com alguém que ousou tentar.
Referências
First Mozambique randomized controlled trial in Manhiça (RTS,S/AS02A) showed safety, immunogenicity, and efficacy against infection and clinical disease in children; published in The Lancet in 2004, with follow-up papers on duration of protection. The Lancet+1PubMed
Modeling and analyses from the Manhiça trial quantified reductions in force of infection and clinical malaria. PubMed
Bridging study in Mozambique comparing AS02A vs AS02D in children. BioMed Central
Infant safety and immunogenicity work laid groundwork for Phase III. The Lancet
Phase III trial (2009–2014) across 11 sites, including Mozambique, showed reduced clinical and severe malaria, with higher efficacy when boosters were used; primary results published in NEJM and The Lancet. New England Journal of Medicine+1PMC







